Sucesso Fake: Músicos Fraudam Números de Streaming Usando Robôs e ‘Jabá 2.0’
No cenário musical contemporâneo, o sucesso muitas vezes é medido pelos números de visualizações no YouTube ou de reproduções no Spotify. Para os artistas, esses números não são apenas estatísticas; eles representam oportunidades de ganhos financeiros, visibilidade e reconhecimento. Contudo, por trás desses números, há uma realidade obscura: a fraude digital.
Com o avanço da tecnologia e a ascensão do mercado digital da música, artistas em busca de fama e fortuna têm recorrido a métodos questionáveis para inflar artificialmente seus números de reproduções. A prática, conhecida como “mercado de plays”, envolve o uso de robôs e a compra de serviços de reprodução em sites especializados. Esses serviços prometem aumentar as estatísticas de reprodução, mesmo que os termos de uso das plataformas de streaming proíbam explicitamente essa prática.
A fraude nos números de streaming prejudica não apenas os artistas que se mantêm fiéis aos seus princípios, mas também toda a indústria musical. A renda proveniente dos direitos autorais é distribuída com base no número de reproduções, o que significa que artistas que utilizam métodos fraudulentos podem acabar recebendo uma fatia maior do bolo, em detrimento dos músicos honestos.
Os métodos de fraude são variados e incluem a compra de plays em sites duvidosos, a utilização de robôs para gerar visualizações falsas e até mesmo a contratação de serviços de inclusão em playlists populares. Apesar das tentativas das plataformas de streaming em monitorar e banir os fraudadores, a prática persiste devido à dificuldade em investigar e punir os responsáveis, especialmente quando os sites envolvidos estão sediados no exterior.
Um aspecto alarmante dessa realidade é a aceitação tácita do “jabá 2.0” por parte de artistas mais estabelecidos. Mesmo músicos renomados admitem recorrer a métodos questionáveis para aumentar sua popularidade digital. O pagamento para tocar em rádios já era uma prática comum, mas agora o foco se volta também para os números do YouTube e do Spotify, que se tornaram indicadores de status na indústria musical.
O relato de um artista sertanejo, que preferiu não se identificar, expõe essa cultura de falsa fama. Ele revela que, apesar de desconfiar da autenticidade dos números de visualizações de seus vídeos, preferiu ignorar suas dúvidas em prol do glamour e das oportunidades que o sucesso aparente proporcionava. Hoje, ele reconhece a falta de ética nesse comportamento e lamenta o ambiente sujo que permeia a indústria musical.
Além das implicações éticas e financeiras, a fraude nos números de streaming também tem consequências legais. Segundo especialistas, manipular artificialmente os números pode configurar crime de estelionato, provocando prejuízos tanto para outros músicos quanto para as plataformas de streaming. No entanto, a falta de regulamentação específica para esse tipo de fraude e a complexidade em investigar sua origem dificultam a aplicação da lei.
Diante desse cenário preocupante, é crucial que as plataformas de streaming intensifiquem seus esforços para detectar e combater a fraude nos números de reprodução. Ações proativas, como o aprimoramento das ferramentas de detecção de atividades fraudulentas, são essenciais para preservar a integridade do mercado musical e proteger os interesses dos artistas honestos.
O Google e o Spotify, líderes no mercado de streaming de música, afirmam estar comprometidos em combater a atividade fraudulenta em suas plataformas. Ambas as empresas destacam a importância da contagem de reproduções legítimas e prometem investir em medidas para reduzir o impacto da fraude nos criadores de conteúdo e detentores de direitos autorais.
Em última análise, a fraude nos números de streaming é uma ameaça à integridade e à credibilidade da indústria musical. Os artistas que optam por seguir o caminho da honestidade enfrentam um ambiente cada vez mais hostil, onde o sucesso é muitas vezes definido não pela qualidade artística, mas pela manipulação dos algoritmos digitais. É hora de combater essa cultura de falsa fama e restaurar a verdadeira essência da música como uma forma de expressão autêntica e genuína.
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Confira a materia completa publicada no ano de 2017 pelo G1 e outros canais oficiais.
Artigo Completo escrito no ano de 2017
Sucesso fake: músicos fraudam números de streaming usando robôs e ‘jabá 2.0’
Com dinheiro e truques digitais, fraude prejudica músicos que têm números verdadeiros. G1 investiga ‘mercado de plays’ e fala com sertanejo que admite sucesso inflado no YouTube.
O número que você vê abaixo de um clipe no YouTube ou de uma faixa no Spotify é cada vez mais importante para os músicos. Em um mundo em que a música é mais digital e menos física, ter muitos “plays” na internet indica sucesso, rende direitos autorais e leva a convites para shows, festivais e outras mídias.
Esses números podem significar muito para a carreira de um artista. Mas, para o público, eles nem sempre representam uma coisa: a verdade. Na batalha para aparentar sucesso, artistas têm usado outros aliados além de fãs reais. A guerra para aumentar a contagem envolve robôs e exércitos de falsos ouvintes que fraudam as cifras.
Vários sites cobram para inflar artificialmente os números, mesmo que serviços de streaming proíbam a prática nos termos de uso e tentem monitorar e banir fraudadores. Advogados dizem que a manipulação da contagem pode ser considerada crime de estelionato na lei brasileira, mas, já que ela acontece em sites estrangeiros, o processo legal seria difícil.
Dá para comprar qualquer coisa no submundo do falso sucesso:
Site vende plays no Spotify —
De onde vem esse milagre da multiplicação? Todos os sites contam a mesma história: têm uma rede de parceiros, ouvintes reais. O discurso comum é que todos os plays são orgânicos.
Em fóruns, músicos, usuários e programadores dizem que os acessos podem vir de outros lugares:
‘Fazenda de likes’ na China tinha mais de 10 mil celulares fraudando popularidade na web
A fraude pode prejudicar os artistas que não a praticam. A renda de direitos autorais do streaming sai de uma parte do faturamento de empresas, como Google (dona do YouTube) e Spotify. O montante é distribuido aos artistas de acordo com o número de execuções das músicas. Ou seja: quem tem plays falsos pode ganhar mais e tirar parte dos honestos.
Não é incomum o YouTube cortar a contagem de plays de um vídeo ao identificar acessos artificiais. Em fóruns de músicos, há relatos de artistas que foram banidos após comprarem milhares de plays nos sites piratas. Mas também há quem passe ileso.
O G1 analisou quatro sites que cobram para aumentar o número de plays. Todos têm origem nebulosa.
1. O Streamify, o mais citado em fóruns, é um site que diz funcionar nos EUA desde 2010. Mas o endereço é de uma empresa da Bulgária criada em 2014.
2. O Streampot, holandês, era bastante citado. Atualmente, porém, ele direciona os pedidos de compra para outro site, o Streamko, sem explicar a relação entre as marcas.
3. O Massmediaplus, registrado no Canadá, não dá nenhuma informação sobre a empresa. Há apenas relatos de supostos clientes (exemplo:'”Ótimo serviço’, Ben, usuário do YouTube.” )
4. O último, Fiverr, é de uma empresa israelense com anúncios de “freelancers” de vários serviços. Nele não há venda direta de plays, mas há uma área de “serviços de Spotify” em que pessoas cobram para incluir músicas em playlists.
Nenhum dos sites respondeu às perguntas enviadas por e-mail sobre o seu funcionamento.
Site vende visualizações no YouTube —
O G1 falou com pessoas que tiveram contato com este mercado de comprar plays. Veja relatos:
Novos músicos: ‘empurrão’ arriscado
“Estou sempre buscando promover minhas músicas e achei esse site. Alguém conhece?”, pergunta um usuário no fórum oficial do Spotify, apontando para um dos serviços de inflar contagem.
“Já usei e funcionou. Mas ouvi que eles usam robôs para gerar streams, mesmo dizendo que não”, responde outro. Um usuário que trabalha com marketing, então, conta: “Gerencio quase 60 contas no Spotify e já tive 6 deletadas [após o Spotify detectar plays ilegítimos]. Não usem”.
Ele explica que os serviços tentam verificar grandes alterações. Se você tem 200 plays e compra mais mil, o número quintuplicado de repente pode ser identificado. Outro músico se apavora: “Cometi um erro terrível e comprei mil plays, agora não consigo cancelar”.
O G1 localizou o usuário. Michael Maurice dia que tem 29 anos e é produtor de música eletrônica no Cairo, no Egito. “Um amigo me mandou um link sobre uma oferta deles de mil plays gratuitos para iniciar, então pensei ‘por que não?’, sem pesquisar muito”, conta. “Tentei falar com eles para cancelar, mas não responderam.”
“No fim não tive problemas. Foram 900 plays até agora.” Ele relata que os números crescem aos poucos, entre 170 e 200 por dia. Mas a experiência não valeu para ele. “Nada se compara a ter ouvintes reais que sacrificam uma parte do tempo deles para ouvir a sua criação”, conclui.
E os grandes? Sertanejo admite jabá às antigas e ‘jabá 2.0’
Com músicos mais populares, pode ser mais difícil detectar a fraude. Se ele tem 1 milhão de cliques, vai bem nas paradas e turbina com 100 mil para se sair ainda melhor (só 10% mais). Ninguém vai notar, certo? Mais ou menos… A ação de robôs pode deixar vestígios:
Um dos perfis russos que comentou no clipe do sertanejo brasileiro que falou ao G1 (‘super classe’, diz o comentário em russo). O perfil não tem mais nenhum outro conteúdo ou atividade no YouTube, um sinal de que é apenas um ‘robô’ russo usado para inflar os números no YouTube, como admitiu o músico ao G1 —
Esses exemplos acima são reais. Um artista sertanejo aceitou falar com o G1 sobre seu sucesso inflado sob condição de não ser identificado. Seu relato ajuda a entender o que leva muitos artistas que, segundo ele, já recorriam ao antigo jabá para as rádios, a usarem também o “jabá 2.0”.
Ele afirma que o pagamento a rádios já era algo esperado. “Rádio não tem jeito. A gente até já deu um Celta zero quilômetro para uma rádio. Era para arrebentar, tocar, tocar. É o comércio da rádio. Isso existe mesmo. Mas aí o número no YouTube também virou status para o artista.”
Quando ele lançou seu clipe, em 2013, tocar em rádio não era o único objetivo. “Você vai a um programa de TV e te apresentam dizendo quantos milhões você tinha no YouTube. Então todo mundo mete o pau”, ele explica.
“Eu desconfiei, mas na época deixei passar porque estava naquela coisa de glamour, fazendo shows. Mas hoje vejo que com certeza teve ‘uma ajudinha’. Teve muito acesso real no clipe, mas teve uma ajudinha também.”
Ele afirma que não se envolvia diretamente no jabá – nem nas rádios, nem em cliques falsos do YouTube. O tal clipe de 5 milhões de views, no auge do “sertanejo pegação”, foi o máximo que ele conseguiu.
Após romper com os empresários, lançou um disco no final de 2015 e colocou todas as músicas no YouTube. A faixa mais ouvida teve 1,8 mil acessos. Hoje, aos 27 anos, não sabe se vai continuar a carreira.
“É um meio muito sujo”, diz.
Brasileiros ‘alugam’ playlists
Outra prática para simular sucesso é comprar espaço em playlists. As listas de faixas, criadas pelos próprios usuários e que outros ouvintes podem seguir, são cada vez mais populares. Assim como uma emissora de rádio cobra para tocar, donos de playlists estão fazendo o mesmo.
Em agosto de 2015, após denúncias nos EUA, o Spotify mudou seus termos de conduta: proibiu explicitamente usuários de aceitarem dinheiro ou outra compensação para incluir músicas em playlists.
Mas ainda é fácil achar sites que atuam como “classificados” de aluguel de playlists. O G1 falou com Fernando Machado, brasileiro que tem uma lista no Spotify com 1,5 mil seguidores. O número é modesto, mas permite uma fonte de renda extra. Ele cobra R$ 15 para incluir uma música por duas semanas na lista.
O site mostra que mais de 100 pessoas já recorreram a esse serviço. Fernando também é músico e usa o dinheiro em sua própria carreira. “Eu trabalhava como vendedor de loja, não ganhava muito bem, fui mandado embora. Falei: ‘Tenho que fazer alguma coisa para investir na minha música'”, conta.
O mercado paralelo é tão aquecido que tem até quem ofereça o serviço de ouvinte compulsivo. O perfil de um brasileiro identificado no site como Gustavo Santos cobra R$ 15 para “ouvir sua música em uma playlist que toca por 24 horas por dia, 7 dias por semana”, durante 2 meses. Já teve 41 clientes.
Usuário cobra para incluir música em sua playlist, que ele mesmo toca sem parar no Spotify, e assim aumentar número de audições —
Advogados: serviços de streaming devem reforçar ação
Além de burlar os termos de uso do sites, inflar a contagem artificialmente é crime? Sim, caso seja provado o uso de robôs ou outros acessos que não de ouvintes reais. A fraude pode ser considerada estelionato, por provocar prejuízo a outros músicos ou aos serviços de streaming, diz o advogado criminalista Diogo Tebet, Presidente da Comissão de Processo Penal da OAB-RJ.
Músicos (que podem ganhar menos dinheiro na divisão dos serviços de streaming e perder o lugar em shows e outras mídias diante dos fraudadores) ou empresas de streaming podem pedir ao Ministério Público para investigar a prática, caso se sintam lesados, diz Tebet.
No entanto, seria difícil investigar a origem dos acessos e comprovar como e quando os robôs foram usados, especialmente com os sites estrangeiros. “É difícil apontar uma infração, pois há pouca regra específica para essa área digital”, diz Luiz Fernando Marrey Moncau, de 35 anos, pesquisador do Stanford Center for Internet and Society.
O caso de vendas de lugares em playlist é ainda mais difícil de ser questionado legalmente, diz Moncau. O Brasil não tem regras específicas nem contra a prática de jabá em rádios.
Tudo se vende: site permite criar 10 comentários no YouTube por US$ 4,99, e promete que os comentários vão aparecer no vídeo que o usuário escolher —
O G1 perguntou ao Google e ao Spotify (líderes no mercado de streaming de música) e ao ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) se eles pediram ou vão pedir investigação. Nenhum deles respondeu a este questionamento. O Ministério Público de São Paulo também foi procurado e disse que não há investigação sobre este assunto.
O mais provável, por enquanto, é que a solução venha com medidas das próprias plataformas de streaming, dentro de seus ambientes. Daniel Campello Queiroz, advogado e dono da CQRights, empresa que gerencia direitos autorais musicais, diz que as empresas devem investir nas ferramentas para perceber e banir os robôs.
“Qualquer medida no sentido de forjar um público que na verdade não existe prejudica os artistas que não utilizam esses métodos. Forjar é essencialmente contra a música, contra a arte”, ele diz.
A perda para os artistas que não fraudam seus números é clara: eles acabam ganhando menos direitos autorais. Mas todos podem se dar mal. “O artista que faz isso, caso se descubra e prove, certamente vai perder sua credibilidade perante os fãs e a indústria.”
O que dizem Google e Spotify
Tanto o YouTube quanto o Spotify permitem publicidade paga oficial em suas plataformas. Esses anúncios, legítimos, podem ajudar os artistas a divulgarem seu trabalho e terem mais visualizações. Mas o material deve ser claramente indicado como conteúdo publicitário das empresas, e só vai fazer o número subir se um usuário real clicar e ouvir a música.
É do interesse deles, portanto, combater estes atalhos de manipulação de números pelos usuários, como os robôs, as “fazendas de likes” e a venda de playlists particulares.
Eles enviaram notas ao G1:
Google: “A contagem de views é incrivelmente importante para nós no YouTube. Nós tomamos ações contra views gerados de maneiras que não seguem nossas regras, incluindo tentativas de terceiros de inflar artificialmente a contagem.”
Spotify: “Nós levamos a atividade de streaming fraudulento extremamente a sério. O Spotify possui várias ferramentas de detecção de fraude monitorando o consumo no serviço para detectar, investigar e lidar com atividades fraudulentas. Continuamos a investir pesadamente nos processos de refinação e na melhora dos métodos de detecção e remoção, para continuarmos reduzindo o impacto dessa atividade nos criadores de conteúdo e detentores de direitos legítimos.”
(materia do G1 no ano de 2017)